quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A quem pertencem os bens culturais encontrados em águas brasileiras?


O Jornal Nacional de 19 de agosto de 2009 noticiou que foram encontradas, no Rio Paraná, a aproximadamente 30 km do município de Porto Rico/PR, embarcações naufragadas em 1924. Segundo historiadores, os barcos naufragaram durante um combate na chamada Revolta dos Tenentes Paulistas, quando desciam o Rio Paraná, lotadas de soldados revoltosos. A missão era conquistar a região de Guaíra, à época um ponto estratégico. Numa batalha sangrenta, tropas federais teriam surpreendido e bombardeado os barcos agora encontrados.
Segundo a mesma notícia, a destinação dos bens encontrados, que indubitavelmente interessam à história brasileira e, portanto, integram o patrimônio cultural brasileiro pelo valor histórico e arqueológico que portam, foi prontamente resolvida no plano local. Assim, as peças vão pra um museu e os barcos, para a oficina e, ainda de acordo com a reportagem, se a restauração der certo, os dois barcos voltarão para o batente, mas com uma nova missão: levar turistas e um pedaço da história pelas águas do Rio Paraná.
A notícia me causou espanto. Não pela riqueza do achado, mas sim pela veiculação de matéria jornalistica que parte da consideração de que: a apropriação, por um particular, de um bem cultural presumidamente de propriedade federal é possível e viável; e que o particular pode encaminhar o bem para restauração e posterior exploração na atividade econômica de turismo sem qualquer controle do Poder Público, especialmente sem passar pelo IPHAN, que é o gestor do bem resgatado.
Pois bem. Eu não deveria ficar espantada – talvez seja um certo exagero falar em espanto –, quando já sei que há, em nosso país, um enorme descaso com o bem cultural subaquático, especialmente no âmbito federal. Também não é fato desconhecido que esses bens apresentam enorme potencialidade (econômica), da qual a União, proprietária desse patrimônio, não se beneficia, ao contrário dos setores privados (inclusive há a especialização em caça-tesouros), que se aproveitam da fragilidade da nossa legislação e se apropriam indevidamente do patrimônio cultural subaquático presente em águas brasileiras.
Ao assistir a matéria jornalística, percebe-se que no caso dos achados do Rio Paraná não havia um caçador de tesouros, apenas um empresário que ouviu a notícia e organizou o resgate das embarcações, certamente arcando com os custos financeiros. Portanto, no caso noticiado não se tem uma situação de má-fé ou de intenção de se apropriar de patrimônio público. A emissora que veiculou a reportagem também cumpre a sua finalidade de trazer temas interessantes ao conhecimento público, ao apresentar uma boa novidade para o conhecimento da história brasileira.
Mas, mesmo assim, uma questão jurídica ainda remanesce: a quem pertencem os bens encontrados? E ainda: por que considerar esses bens como bens culturais?
Essas embarcações se enquadram no conceito de bem cultural porque o material achado representa traços e aspectos das relações do seres humanos num espaço geográfico e temporal em que se estabeleceram (naufragaram no curso de um combate, quando desciam o Rio Paraná, lotadas de soldados revoltosos). São bens que possibilitam o conhecimento (ou melhor preenchimento), por meio dos artefatos encontrados e estudados, da história do nosso país (especialmente da “Revolta dos Tenentes Paulistas”).
Assim, a presunção é de que estas embarcações são bens de valor histórico e/ou arqueológico. Digo que há uma presunção porque a Lei nº 7.542/86 – que dispõe sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terreno de marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar – não apresenta um conceito de bem cultural subaquático. Ao mesmo tempo, os barcos resgatados não se enquadram nos exemplos que constam do artigo 2º da Lei 3.924/61, que relaciona os bens que constituem monumentos arqueológicos ou pré-históricos.
Nesse mesmo dispositivo legal é dito que os bens mencionados não encerram a relação dos bens protegidos, já que todos os bens de valor e traços significativos, a juízo da autoridade competente (que no nosso sistema normativo e administrativo é o IPHAN), também são considerados bens arqueológicos. É razoável afirmar que nem todos os bens afundados, submersos, encalhados ou perdidos em águas integram o patrimônio cultural subaquático. Por isso, somente o IPHAN – a autoridade competente para avaliar o valor cultural do bem – é que pode descartar o interesse da União e liberar o bem para ser explorado pelos privados.
No caso que estamos a comentar, os barcos resgatados, de bens privados que atendiam à função de deslocamento em águas fluviais, passam, em razão da situação de submersão contínua por aproximadamente oitenta e cinco anos, à condição de bens arqueológicos, de propriedade da União (conforme art. 20, inc. X da Constituição). O IPHAN deve analisar o valor dessas embarcações resgatadas; e enquanto não o faça, estas serão tratadas como bens arqueológicos (o juízo do IPHAN é vinculado, cabendo ao órgão a utilização de critérios estritamente técnicos), já que este tratamento é o mais adequado para os bens potencialmente portadores do traço de interesse público.
Os bens arqueológicos, dentre os quais estão os bens subaquáticos, têm um interesse público qualificado. Isso não significa que as embarcações não possam ficar em poder do particular, no período em que se avalia o valor concreto do bem. Esta é uma hipótese que pode ser considerada pelo IPHAN, mas que exige uma discussão do órgão com os arqueólogos com a finalidade de se chegar a um consenso no sentido de que esta destinação provisória é a medida mais apropriada para proteção do bem. Caso se concorde com a adoção desta medida, o particular pode assumir a posição de depositário fiel, num Termo com prazo determinado e com obrigações prescritas, inclusive a obrigação de que todo o manejo e interferência no bem devem ser autorizados pelo IPHAN. Há também a possibilidade de exigência do cumprimento de condicionantes em relação ao local em que os bens serão guardados e, ainda, deve ser assegurada antecipadamente uma base de financiamento adequada, suficiente para arcar com as despesas relativas ao bem em poder do depositário.
Enfim, todas as abordagens e discussões em torno dos bens achados em águas brasileiras exigem a presença do IPHAN (e participação dos arqueólogos, sempre que possível). A primeira presunção é a de que estes achados são bens públicos afetados. Fixada a premissa da dominialidade federal, pode-se pensar em destinações que atendam à sustentabilidade do bem e aos direitos culturais da sociedade brasileira.

A autora deste texto, Inês Virgínia Prado Soares é Procuradora da República em São Paulo, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,Especialista em Direito Sanitário pela UNB e Presidente do Instituto de Estudos Direito e Cidadania – IEDC.

Fonte: Revista das águas. Por Inês Virgínia Prado Soares. Disponível em: http://revistadasaguas.pgr.mpf.gov.br/edicoes-da-revista/edicao-atual/materias/a-quem-pertencem-os-bens-culturais-encontrados-em-aguas-brasileiras Acesso: 20/10/2010

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