segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Rios que voam

Expedição mostra como correntes de ar carregadas de umidade saem da região amazônica e afetam o nível hídrico no sul e sudeste do Brasil
São cada vez mais frequentes e pesadas as tempestades que caem no sul e sudeste do País, fato que causa consequências desastrosas para boa parte da população. Por outro lado, os períodos de seca são cada vez mais extensos, o que leva ao racionamento e a complexos problemas econômicos e sociais. Mas será que alguém se dá conta da origem destes efeitos?
Para entender melhor o ciclo hidrológico no Brasil e os trajetos percorridos pelo imenso volume de água representado pela umidade atmosférica, Gérard Moss – explorador ambiental, engenheiro e piloto –, há mais de um ano sobrevoa o país dentro de um avião monomotor, passando por várias cidades de norte a sul – Belém, Santarém, Manaus, Alta Floresta, Porto Velho, Cuiabá, Uberlândia, Londrina, Ribeirão Preto, entre outras. Seu projeto ficou conhecido como Rios Voadores.
O nome da expedição que o ex-empresário do ramo de afretamento marítimo planejou há dois anos, com patrocínio de R$ 2,5 milhões da Petrobras e participação de uma dúzia de cientistas, é uma alusão ao grande volume de vapor de água transportado pelas massas de ar existentes de norte a sul do País. Este verdadeiro rio que viaja sobre nossas cabeças pode ser maior que a vazão de todos os rios do Centro-Oeste, Sudeste e Sul e da mesma proporção que a do Rio Amazonas, o maior do mundo, com 200.000 m³ de água por segundo. Rios Voadores é uma nova fase do projeto Brasil das Águas, que faz parte do Programa Petrobras Ambiental, patrocinado pela companhia desde 2003. A ação também conta com a parceria da Agência Nacional das Águas (ANA).
Aliás, o maior objetivo do trabalho é exatamente aprofundar os estudos sobre tais correntes de ar que carregam umidade da Amazônia. Ao voar junto às nuvens, Gérard colhe amostras do vapor de água que são analisadas no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA), em Piracicaba. Isso acontece porque o avião dispõe de um pequeno coletor externo que capta o ar ambiente. Na mesma hora em que é coletado, o ar é direcionado a um tubo de vidro que é resfriado com gelo seco (-80°C) para condensar a umidade em uma gotinha de água no tubo. Sua análise procura propriedades dessa gota, que possam definir da onde veio a água carregada por aquela massa de ar.
Para conseguir diferenciar a composição do ar em diferentes camadas atmosféricas, a coleta geralmente ocorre entre 500 e dois mil metros acima do nível do mar, em tubos de 40 centímetros, contendo uma pequenina gota de água. Para os especialistas, trata-se de um experimento pioneiro capaz de desvendar os mistérios acerca do assunto.
Gérard já fez um total de 12 viagens e estima ter recolhido cerca de 500 amostras. Outras 500 amostras de água de chuva e de rios foram coletadas. Os resultados encontrados pelos cientistas que trabalham na análise desses dados indicam que a expedição está no caminho certo.
O perigo mora ao lado
O engenheiro prevê que as informações sirvam para mostrar até que ponto o desmatamento da região amazônica poderá afetar o clima no restante do Brasil e de que forma tal degradação alterará o ciclo hidrológico, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. As informações coletadas devem servir para que os modelos usados pelos estudiosos das mudanças climáticas possam validar seus resultados.
Existe uma forte recirculação de água entre a superfície e a atmosfera que é causada pela transpiração das plantas que compõem a floresta, fato que contribui para os altos níveis de precipitação que chegam a cerca de 2.400 mm/ano ou mais na floresta amazônica. Portanto, é certo que a destruição da mata provoca alterações ainda difíceis de quantificar. “Uma árvore de grande porte coloca cerca de 300 litros de água por dia na atmosfera. Sua retirada não atinge somente a Amazônia, mas todas as outras regiões para onde a água é transportada pelos ventos. Temos no Brasil cerca de 600 mil quilômetros de terras desmatadas nos últimos 30 anos. Ainda não sabemos mensurar com precisão o tamanho deste impacto sobre o clima”, observa.
Gérard comenta que, apesar de a Amazônia Legal representar, em média, 10% da população e do PIB do País, pouco é investido em tecnologia. “É justamente lá que deveria haver muito mais investimento. O clima de São Paulo nunca vai ter impacto na Amazônia, mas toda a região amazônica faz a diferença, não só para as demais cidades brasileiras como para outros países”, avalia. E ele tem razão: já se nota que os efeitos extremos das mudanças climáticas podem variar de alagamentos até o início de um processo de desertificação de vários municípios. “Mas, está na hora de olhar para a floresta como parte da solução e dar mais valor a ela”, destaca o explorador.
Com tudo isso, Gérard também espera aproximar a população dos grandes centros urbanos das questões relacionadas ao meio ambiente que as afeta diretamente, além de alertá-la sobre a importância da conscientização do uso racional da água. “Ninguém nunca havia acompanhado os rios voadores de avião para tentar entender como o processo funcionava. É importante que a população entenda um pouco mais. E o papel da mídia é fundamental para isso”, comenta.
O começo de tudo
É importante ressaltar que todo o projeto tem a coordenação científica de Enéas Salati, agrônomo e ex-professor do CENA/Esalq do campus de Piracicaba da Universidade de São Paulo, considerado um papa no assunto. Além dele, há a participação de vários cientistas ligados ao tema. Segundo Gérard Moss, um dos mais importantes pontos do projeto é unir a técnica isotópica à meteorologista e vice-versa.
Na verdade, há 30 anos Salati fez um estudo, por meio de técnicas isotópicas, que revelou que 44% do fluxo de vapor de água que penetra na região amazônica vindo do Oceano Atlântico, trazido pelos ventos alísios que sopram de leste para oeste, saem da bacia amazônica, condicionam o clima da América do Sul e atingem as regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil.
A pesquisa é, até hoje, utilizada como base para o conhecimento hidrológico da região e foi fundamental para a elaboração do projeto Rios Voadores. Segundo o prof. Salati, “o projeto só foi possível de ser executado por causa do espírito aventureiro e da coragem de Gérard Moss. Ele enfrentou os perigos das viagens, acompanhando o deslocamento das massas de ar e coletando as amostras de vapor de água de Belém até o interior do Amazonas – e depois rumo às zonas centrais do Brasil – em uma pequena aeronave”.
Rios Voadores
A expedição – Gérard Moss, idealizador e realizador do projeto, percorreu várias regiões brasileiras em um avião monomotor para identificar os cursos dos rios voadores, que transportam vapor de água de norte a sul do País.
Objetivos – Aprofundar os estudos sobre o transporte do vapor de água da bacia Amazônica para outras regiões. Buscar avaliar os mecanismos desse transporte da umidade e entender de que forma o desmatamento e as mudanças climáticas globais influenciam o nível das chuvas em outras regiões.
Metodologia – Amostras de vapor de água coletadas em pequenos tubos durante o voo são analisadas, por meio de técnicas isotópicas, ajudando a identificar a origem, a dinâmica e o deslocamento das massas de ar e de vapor de água.

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